Essa não é uma carta de amor


     
      Estou eu aqui, fechada nessa quarentena no quarto diante a esse computador. Na mesa o copo de vinho me convida a buscar mais um pouco na geladeira. Não faço ideia o que tô fazendo aqui.
     Espera. Volto já.
     Me levanto mais pra lá do que pra cá, afinal é a segunda garrafa de Merlot virada só essa noite. Não me ative a sabores refinados nesses últimos dias.  Me peguei no mercado escolhendo o mais barato e vagabundo que passava na frente, porque se é para beber trancada nesse prédio alto de Pinheiros, que seja bebendo muito. Cheers!
      Passo no corredor cantando alto para espantar as mazelas de Dionisio e busco o meu néctar divino. Resolvo levar logo o resto da garrafa porque facilita a pobre mulher bêbada. E volto para a mesa de trabalho.
      Puta merda. Lembrei. Não tenho mais trabalho.
      Dou uma risadinha de canto de boca e tomo mais um gole "puta merda, não tenho mais trabalho!"
  Falo sozinha como se estivesse conversando com meu ex chefe idiota: "aí bolsominion filho da puta, vai lá tocar seu berrante, tesão do caralho com Lula, porra! Vai tomar no centro do seu C#!"
      Descarrego mais uma dezena de palavras aleatórias e começo a chorar. Debruçada na mesa com o copo na mão não me seguro e derramo todas as lágrimas que guardei desde a semana anterior. Parecia forte e não preocupada com o que estava acontecendo , mas eu estava cansada de fazer pose. Desde o início do ano tudo estava caindo como um castelo de cartas na minha vida e agora a falta de trabalho foi uma pá de cal.
    Não tem mais nada de engraçado.
    Olho para o computador e sei que não tenho planilhas para me preocupar. Não tenho mais relatórios para escrever. Nem documentos para analisar. E agora?
   
...
    Talvez escrever seja a minha saída para não pular do 15o andar do flat. Penso bem. Ainda tenho tela nas janelas. Ia perder muito tempo cortando isso. Preguiça. Pular ia causar uma sujeira danada para seu Luis da portaria. Já ganha pouco tadinho. Melhor não, me deixa aqui com vinho e um teclado.
   Mas voltando. Como estava falando: desde janeiro que tudo virou de cabeça pra baixo. Depois do reveillon parece que uma chave divina resolveu virar para tornar as coisas mais complicadas. Perdi meu gato, o Félix ( sim, igual o quadrinho, me deixa!), sumiu pelas ruas de São Paulo depois das comemorações do ano novo (odeio fogos); minha melhor amiga foi embora do país e além da demissão do trabalho ... o adeus do Alex.

  Dou mais um gole do vinho que já está quente da garrafa e limpo a boca com o antebraço. Respiro fundo. É... adeus Alex. Filho da mãe. Me deixou. Seis anos de história. Por que, hein?
...

  Na mesa, do lado direito, vejo imediatamente a xícara que ganhei dele quando estávamos em Roma.
Uma xícara com a bandeira da Itália e um Ciao! em lettering. Nossa primeira viagem juntos. Foi deliciosa. Bebemos e comemos como se não tivesse amanhã. E voltamos para nosso quarto do hotel e transamos como fosse a primeira vez. Sexo sensacional. Na última noite em terras romanas gritamos tão alto que ouvimos "Stiamo ascoltando. Silenzio!*"

Lembro desse episódio dando uma risada alta e leve. Não foi bem divertida a cara do concierge no hall quando arrastávamos as malas para o check out,  mas foda-se. Ele não gozou. Eu sim. Problema dele se não estava usando o pinto e fazendo sua vida feliz.

 Esse evento foi lembrado por muitos e muitos anos depois durante jantares no chão da sala ou depois de um sexo incrível no carro. Ríamos muito e contávamos em detalhes. -  Putz. Era divertido rir com Alex sobre isso. Lembrar disso meu riso murcha , supiro e falo sozinha "por que me abandonou seu palhaço?"

...
 Vamos aos fatos: Alex adorava me fazer rir. Não tinha para ninguém. Foi bem o que infeliz fez para me conquistar: contar piadas. Mas seu humor não era babaca ou muito menos de baixo calão. Era um humor sarcástico e sua risada deixava a conversa muito mais gostosa. Sua covinha no canto da boca denunciava com aqueles olhos verdes brilhantes. Eu podia estar emburrada , chateada ou preocupada com algo. Não era possível se manter assim com aquele sorriso sacana e o olhar me encarando. Eu me desmanchava em microssegundos e partia para seus braços.

Bem, não era apenas aquele sorriso de quem acabou de sair de um filme de princesa Disney e olhar de quem vai me despir a qualquer momento que me encantou. Era seu tempero. Seu fogo. O gosto agridoce da sua boca. Aquelas mãos. Sim. Que mãos...e o sexo. Que sexo.

Um conjunto da obra que me pegou lá trás naquele encontro inocente na festa da faculdade.

São três da manhã e quero falar sobre isso, mas o álcool já está me fazendo trocar  letras. Vai dar merda. Eu volto para escrever um pouco sobre essas memórias das noites (e dias, muitos dias) de sexo muito gostoso com esse homem, Alex.

Bem, minha cara, não é blog com cartas de amor.

Ele me abandonou.

Foda-se.

Isso não é uma carta de amor.

É um blog de foda.

                                                              Kate

Continua...


*Estamos escutando, silêncio! (italiano)